Um passeio de 30 léguas - A Gazeta do Sertão
- Flauber Barros Leira
- 29 de abr. de 2019
- 4 min de leitura
Publicarei aqui no blog uma narrativa de uma viagem de 30 léguas realizada por Irineu Joffily e seu amigo Dr. José da Cunha Rabelo pelos interiores dos Cariris Velhos realizado em 1889 e publicado no jornal - A Gazeta do Sertão, número 19 de 10 de maio de 1889, página 2 e outros, com o intuito de revisitar as viagens a cavalo pela região, a cultura e as tradições dos moradores naqueles distantes idos de 1800. Espero que viagem nestas narrativas tanto quanto eu.
Sumário
Partida – Pocinhos – Os rios Santa Rosa e Santa Clara – Perdidos em uma caatinga – A fazenda Pendencia – Serra dos Borges. – Pousada em uma fazenda dos Carcarás. – O rio Mucuitú. A vila do Batalhão, seu aspecto, tradição histórica. Estado desta parte do Cariri – Excursão ao Pico – Uma casa forte no alto da montanha – 1500 metros acima do oceano - Descrição parcial do território paraibano – Volta – Animais procurando a proteção do homem – Seis surdo-mudos em uma casa – Chegada.
1ª parte
Eram quatro e meia hora da madrugada do dia 28 de abril último, quando eu e o Dr. J. da Cunha Rabelo montávamos a cavalo. Campina ainda repousava; apenas um ou outro vulto humano via-se perpassar pela praça municipal, procurando a igreja do Rosário, que tocava missa. Avizinhando-nos da praça da Independência ouvimos os prolongados grunhidos dos encarregados da limpeza publica da cidade; eram algumas dezenas de porcos, que, espalhados por baixo das gameleiras e por todos os cantos da praça, exerciam tão salutar missão de higiene, limpando-a das cascas de frutas e de todas as mais imundícies, deixadas pela feira do dia antecedente. Rompemos por meio da legião suína e transpusemos logo os limites da cidade.
Ao amanhecer estávamos no alto do Cuité. Paramos um pouco, voltando os cavalos, para admirarmos esse lindo ponto de vista de Campinas, tantas vezes por mim apreciado, e que meu companheiro contemplava pela primeira vez.
Em poucas horas chegávamos a povoação de Pocinhos, anunciada desde mais de uma légua de distancia pelo Castelo e por outros enormes rochedos que a cercam.
Pocinhos tem duas coisas e uma pessoa, que o fazem conhecido. As coisas são a linda igreja que esta sendo reconstruída e a casa da caridade; a pessoa e o Reverendo cônego Francisco Alves Pequeno.
Residindo ali há cerca de trinta anos, identificou-se tanto com o povo, por quem e venerado sem a mínima discrepância, que se falando em Pocinhos, supõe-se logo o cônego Pequeno e vice-versa.
A seu convite o acompanhamos na visita da igreja, que se acha internamente quase concluída. O estuque da capela-mór e dos corredores e da maior perfeição e solidez; faltando apenas o da nave principal, que somente será feito depois de construída a torre, elevada sobre colunas formando um peristilo ou adro.
Incontestavelmente ficara uma das mais elegantes igrejas do sertão, e a ela ligado o nome do cônego Pequeno; o qual com todo esforço tem dirigido o serviço e pretende conclui-lo em breve com o auxilio dos cofres públicos.

As três horas da tarde, nos apresentávamos no portão da casa de caridade, situada a uns 500 metros da igreja, ao pé de um extenso lajedo, cercada de bastos arvoredos e tendo na frente o açude que banha seus muros.
Ao toque da sineta, anunciando a nossa visita, a irmã porteira deu-nos entrada. Atravessamos o jardim que precede a casa, plantado de diversas flores e de grandes maciços de verdura, formados do conhecido arbusto flor-de-prados, alguns figurando caramanchéis, que ofereciam o útil da sombra reunindo ao agradável de suas escarlates flores.
A irmã Superiora recebeu-nos no limiar da capela com a religiosa e poética saudação – Louvado seja o nosso senhor Jesus Cristo!
Feita uma breve oração, acompanhada de um hino à Virgem, entoado pelas educandas em um salão contiguo, a irmã Superiora correu o reposteiro de uma larga porta que estabelece comunicação da capela com o referido salão.
Assentadas em bancos fixos ao longo das paredes, tendo a frente mesas estreitas em toda a sua extensão, achavam-se umas trinta órfãs de quatro a quinze anos, havendo outras de dois anos e menos de idade nos braços de algumas empregadas do estabelecimento.
A Superiora, senhora, que representa ter de 55 a 60 anos, venerável pelas suas virtudes, mostrou-nos as escritas das órfãs; e declarou-nos que a casa sofria penúria; porque, não possuindo patrimônio, estava reduzida ao único recurso dos trabalhos de tecelagem, cujo produto era insuficiente para o sustento de toda comunidade, desde que os trabalhos agrícolas, em que também se empregavam, eram todos perdidos pela seca.
Não há nada que mais se comova do que ver a infância desvalida, entregue aos azares da sorte; por isto considerei sempre sublime e considero a instituição de casas de caridade do venerando Pe. Ma. Ibiapina, o apóstolo do sertão da Paraíba.
O meu companheiro, jovem de um coração bem formado, estava possuído da maior comoção, quando pus termo a visita; e a prova deu quando tivemos de depor nas mãos da Superiora o nosso óbolo em favor das infelizes órfãs. Pareceu-me ver que de sua carteira saia uma nota, representando o duplo do valor da que eu havia dado.
A saudação da despedida foi a mesma da chegada;
-Louvado seja N. S. Jesus Cristo!
-Para sempre seja louvado! - respondeu em coro toda a comunidade.
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