Um passeio de 30 léguas - parte final
- Flauber Barros Leira
- 29 de mai. de 2019
- 4 min de leitura
O dia 30 foi de festa para a vila do Batalhão; ouviam-se cada momento as alegres notas de uma banda de musica, que percorria as ruas. Numerosos amigos e parentes do Cap. Sulpício Torres Vilar concorreram de diversas parte para assistir ao seu casamento, que teve lugar na tarde desse dia. Tomando parte no regozijo geral pelo auspicioso consorcio do nosso amigo, projetei no dia seguinte fazer uma excursão ao Pico.
De todos os pontos da vila aquela enorme pirâmide granítica, de alvura deslumbrante, como que provocando-me a compará-la com as mesquinhas obras dos homens.
Há anos, em uma viagem a vila do Teixeira, já havia visto o elevado monte, atalaia gigante da parte ocidental do Cariri, como é o Caturité da oriental. Nessa ocasião tive a honra de ser guiado pelo ilustrado cônego Bernardo de Carvalho Andrade ao Tendó, ponto culminante da Serra do Teixeira; e de la, avistando a majestosa serrania do Jabre, rival em altura do Pico, desejei subir a esses dois montes, incontestavelmente os pontos mais elevados de toda província da Paraíba.
Não devia, pois perder essa oportunidade de visitar um deles.
Enunciando a minha presença, diversas pessoas se ofereceram logo para a excursão, entre as quais o Rev. Vigário Costa Ramos, espírito adiantado e apreciador dos grandes espetáculos da natureza. Dos meus companheiros de viagem, o Dr. Chateaubriand declarou logo que não iria, receando as vertigens das grandes alturas, o Dr. Rabelo mostrou-se entusiasta da ideia e pronto para a excursão.
A hora designada para a partida, 4 da madrugada do dia seguinte, 1º de maio, de todos aqueles que, na véspera, se haviam espontaneamente oferecido, apenas compareceu o vigário Costa Ramos, alias Pe. Neco, como e geralmente chamado pelo povo.
Os outros, entre os quais o meu companheiro, Dr. Rabelo, fatigado pelo exercício da dança, a que se tinham entregado durante quase toda a noite, eram vencidos pelo sono.
-Nós, somente?! Exclamei, voltando-me para o Padre.
-Multi sunt vocati, pauci vero electi[1], diz a escritura; respondeu-me ele, dando uma risada.
Montamos a cavalo, tendo por guia Francisco Moreira, prático daquela serra, onde nascera. Acompanhava-nos também o Sr. Francisco Inácio dos Anjos, procurador da câmara. A trote largo vencemos duas léguas e meia antes de amanhecer na fazenda Volta; a distancia dai ao Pico e de légua e meia.
Deixamos a estrada e penetramos em uma vereda. Toda a cordilheira em grande extensão estava a nossa vista; o pico, porém, achava-se coberto de densa nuvem.
-Parece que o gigante de pedra não quer receber a nossa visita, disse ao meu companheiro.
-Ora! Ele mostra-se carrancudo, porque acordou agora mesmo; respondeu, rindo-se, o Pe. Neco.
Ao nascer do sol, estávamos ao pé da serra e, subindo-a, alcançamos logo uma explanada, onde é o sítio Almas do Sr. Eleutério Ferreira da Costa, laborioso e honrada agricultor, que sustenta uma família de 15 filhos. A sua casa atrai a atenção por uma singularidade. Construída de pedra e tijolo, com 60 palmos de frente e 70 de fundo, bastante alta para conter um espaçoso sótão, assenta toda ela em um extenso lagedo, baixo e igual, que lhe serve de ladrilho; o que verifiquei, visitando todos os quartos e salas, a convite do seu proprietário.
Dessa chapa da serra, onde o ar e da maior pureza, goza-se já de magnifica vista para o sertão.
Logo que conheceu o fim de nossa viagem, com a melhor boa vontade, pôs-se o Sr. Eleutério a nossa disposição, e guiou-nos para as proximidades do pico, que já se mostrava livre do denso veio de nuvem, que pouco antes o cobria. Chegado ao ponto, onde não era mais possível continuar a viagem a cavalo, apeamo-nos e a prosseguirmos a pé.
Antes de chegarmos a base do imenso obelisco natural, que íamos galgar ate o cimo, passamos por grande depressões e extensos canais, onde a vegetação e inteiramente diversa do sertão propriamente dito; assim, vimos frondosos camucás, catolés, etc. e por vezes colhemos os seus frutos.
Íamos ainda, eu e o padre, com os nosso sapatos; mas afinal chegamos a um ponto, onde forçoso nos foi deixa-los, por ser impossível continuar calcados; estávamos ao pé da imensa mole de granito. Descalços e arregaçadas as calcas, principiamos a subir, auxiliados das mãos, parando frequentes vezes para tomarmos fôlego.
A subida ia tornando-se cada vez mais difícil e perigosa, por ser quase em linha vertical. Para trás e para os lados direito e esquerdo eram precipícios a milhares de palmos abaixo de nos; para cima afigurava-se para nos ainda enorme a distância a vencer.
Firmando as pontas dos pés e os dedos das mãos nas escabrososidades da rocha empregávamos grande esforço para ganharmos alguns passos. O padre Neco já demonstrava o seu grande cansaço por copiosíssimo suor.
Em um momento, em que o vi parado medindo com a vista um lanço de enorme penhasco que lhe parecia inacessível, quis anima-lo com a seguintes palavras:
-Vamos padre, a igreja deve sempre ir adiante.
-Não para os precipícios, meu amigo; disse ele extenuado, mas ainda com toda a agudeza de espírito.
Compreendi que as forcas lhe faltavam; e então julguei conveniente declarar-lhe o perigo que corria se continuasse naquela subida, cada vez mais perigosa. Acedeu, dizendo que ali esperaria por mim.
Achávamo-nos então apenas em meio dia colossal pirâmide que forma o pico; e confesso, que quando afastei-me do Padre Neco para continuar a ascensão, se não estava tao fatigado como ele, já sentia desfalecer o animo. Reagi, porém, contra esta fraqueza.
Coloquei-me entre os dois guias; na frente ia Moreira, seguia-me Eleutério.
-Não olhe para os lados; a vista sempre em frente; dizia Moreira.
-Nada receie, Sr. Doutor, se escorregar, eu o sustento; animava-me Eleutério, em pé na enorme rocha, quase à prumo.
Eu tinha a maior confiança nos meus guias; eram todos nascidos naquela serra, e acostumados, desde a infância, a percorrê-la em todos os seus alcantis.
Para mais fotos da montanha veja o blog do Jonatas Arquivos
[1] Muitos são chamados, porém, poucos são escolhidos = latim
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